Sou músico profissional há 25 anos, tendo vivido 20 desses anos em Brasília. Pela minha trajetória musical, posso dizer que tenho propriedade para falar sobre esse assunto.
Esses 25 anos de experiência me mostraram muito bem como se aprende música. Eu passei pelo que considero serem as três escolas que fazem um músico aprender a tocar. São elas: a banda de baile, a casa noturna e a escola de música formal.
Numa banda de baile o repertório é bem variado e o músico executa as músicas exatamente (ou quase exatamente) como são em suas versões originais. Em termos de aprendizado musical, o músico tem contato direto com vários estilos diferentes, treina sua percepção auditiva, sua constância de execução, sua memória, seu comportamento de palco,… Essa proposta de trabalho fornece muitas ferramentas musicais, porém a criação musical é um pouco limitada.
Numa casa noturna, o contato com a música é semelhante ao da banda de baile, porém sem a característica de executar a música como sua versão original. Além do mesmo aprendizado que a banda de baile oferece, a casa noturna proporciona velocidade de raciocínio e compreensão estrutural da música (muitas vezes o músico toca a música sem conhecê-la, “adivinhando” o que vai acontecer) e maior espaço para criação. Acho esse último ponto o principal diferencial da “escola” casa noturna.
Na escola de música formal o músico tem contato com a literatura, a escrita, a estruturação musical estudada, harmonia, arranjo, improvisação, composição,…
Em qual desses três espaços realmente se aprende música? A primeira resposta que vem à cabeça é a escola de música formal, mas a resposta correta é a escola “tocando”. O aprendizado musical se dá principalmente no ato de executar a música, que é feito nos três ambientes. Mas posso dizer claramente que uma escola de música formal não é o ambiente ideal para aprender. Explico.
Os educadores musicais modernos são categóricos em afirmar que o aprendizado se dá pelo envolvimento musical direto, ou seja, audição, execução e composição. Aprendemos muitas coisas numa escola de música, porém a quantidade de prática musical que o aluno tem ainda não é suficiente para o seu pleno desenvolvimento. Um músico popular, por exemplo, além das aulas teóricas, terá sua aula de instrumento e no máximo dois encontros de prática de conjunto. Isso é muito bom, mas ainda é pouco.
As outras duas escolas é que darão a compreensão concreta do fazer musical. Dentre elas, o espaço mais privilegiado é a casa noturna, tanto pela maior quantidade de espaços disponíveis, quanto pela maior possibilidade de expressão pessoal dos músicos, seja em músicas de outros compositores, seja em trabalhos autorais. A casa noturna é um ambiente propício para a criação musical.
A partir do momento que uma cidade silencia os bares, mata a sua cultura musical. Retira a possibilidade daquele músico promissor se desenvolver e tornar-se um artista de alcance regional ou nacional. Retira a possibilidade da cidade criar sua própria cultura musical, já que não se produz música que caracterize a população. Retira a possiblidade da cidade tornar-se um centro cultural, uma metrópole que cada vez atrai mais gente qualificada para compor sua cara. Retira a possiblidade de criar uma cadeia produtiva autossustentável, onde o artista possa viver e trabalhar na cidade de forma digna.
Uma cidade sem cultura musical é uma cidade só de concreto. Não é uma cidade de pessoas. É uma cidade que se acha centro, mas não tem tanta coisa para mostrar. É uma cidade que se acha independente, mas fica à mercê do que vem de fora. É uma cidade que se acha conhecedora de cultura, mas não tem a capacidade de perceber a qualidade musical superior de muitos de seus artistas. É uma cidade que acha que tem identidade, mas não tem ideia de que a identidade da cidade é feita pelos seus moradores que fazem arte. É uma cidade que se acha rica culturalmente, mas o resto do país só fala de artistas de 10, 20, 30 anos atrás. É uma cidade que cria artistas, mas eles se vão, pois precisam de espaço para mostrar sua arte. É uma cidade que tem orgulho de seus artistas, mas só dos que não moram mais lá.
Como consequência a cidade cria:
Uma população sem identidade cultural
Uma população que vive à mercê do que lhe “empurram”
Uma geração de músicos que provavelmente não chegarão a seu potencial máximo
O êxodo cultural
Um lugar que só serve para dormir.
Você, indivíduo, que se acha no direito do silêncio, saiba que outros, população, têm direito à manifestação cultural. Viver em sociedade significa o coletivo sobrepujar o individual. Significa não ter alguns privilégios para que outras pessoas tenham espaço. Significa que o músico vai tocar mais baixo para não atrapalhar seu sono, mas você ouvirá um pouco do som da rua. Significa criar regras de convivência que equilibre os dois lados da moeda. Criar regras que permitam a cidade viver a cultura e você ter seu repouso.
Você imprensa, que tem seções inteiras sobre cultura, pode se manifestar a favor do equilíbrio entre essas duas posições e mostrar qual lado está sendo oprimido. Ou pode ficar calada, se preferir continuar valorizando só o que vem de fora.
Você, que foi eleito para gerir a cidade, saiba das consequência de suas ações nesse sentido. Saiba que fazer que não está vendo os seus órgãos agirem de forma opressora e a polícia agir de forma extremamente truculenta vai contribuir transformar a cidade em um museu musical. Você será responsável por manter a maior representatividade da música de Brasília apenas na década de 80.
Você, artista, saiba que tem que respeitar o direito dos que moram próximos ao local que você se apresenta. Saiba da sua responsabilidade em manter o volume de sua execução musical dentro dos limites acordados.
O jogo está claro. De um lado, indivíduos querendo silêncio absoluto, do outro artistas querendo manifestar sua arte. A entidade civil capaz de resolver esse impasse é inerte e incompetente para colocar uma legislação clara, moderna e objetiva, que atenda o que todos os agentes envolvidos pedem.
Enquanto isso, a população perde sua cultura, o artista perde seu espaço e pessoas dormem.
HP