Sobre música, trabalho e coronavírus
* Esse é um post sobre música, mas certamente se aplica a todas as artes.
Não é só trabalho, é arte.
Já perguntou a um músico porque escolheu essa profissão? A resposta mais comum é “não tem como ser diferente. Faz parte de mim”. É assim que todos os músicos se sentem. Trabalhar com música é simplesmente parte da vida de cada um e não ser músico é equivalente a não existir como ser humano.
Eu já tinha consciência disso por causa de minha própria vida. Simplesmente não é possível eu não ser músico. Porém, comecei a perceber o quanto isso é verdade em festas de casamento. Observei que, quando um dos noivos era instrumentista, o instrumento musical fazia parte das fotos do casamento. Daí eu pensei que, num evento social tão significativo quanto um casamento, por que um instrumento musical estaria nas fotos que farão parte das recordações mais importantes do casal? Minha resposta: porque não é simplesmente para colocar um objeto para compor uma foto. Tem importância suficiente na vida dessa pessoa para o instrumento estar lá. Você verifica relação semelhante pela presença de animais de estimação nessas fotos.
Lembro a primeira vez que percebi isso. Eram as fotos do casamento de Marcos Paulo Merê e Fran Ungarelli. Várias belas fotos do casal e, em algumas delas, o contrabaixo acústico nas mãos do Merê! A arte musical da Fran também estava representada nas fotos, mas não na forma de um instrumento musical físico. Ela, como cantora, sempre tem sua arte atrelada a sua imagem porque o instrumento dela é parte de seu corpo.
Nos dias de hoje, quando todos os bares, restaurantes, teatros e casas noturnas foram fechados e todos os shows e eventos cancelados por causa da pandemia do coronavírus, você percebe a necessidade dos músicos em exercer sua arte independente da existência dos palcos reais. A quantidade de lives no Instagram e no Facebook de pessoas simplesmente tocando/cantando aumentou incrivelmente. Você pode assistir a shows todos os dias, se quiser. Além do “palco virtual”, há vários casos, seguindo o que começou na Itália, onde músicos colocam caixas de som na varanda e fazem shows para a vizinhança. No prédio ao lado do meu existe um desses músicos e ouço os gritos de empolgação vindo de todos os lados quando ele canta.
Não é só arte, é trabalho.
Na última década, tenho verificado uma pressão nas relações de trabalho dos músicos que causa uma grande redução na renda média e acredito que seja, pelo menos em parte, pela relação pessoal com a arte. Aqui em Brasília, em 11 anos houve uma redução média de 45% do valor dos cachês*. Você já se imaginou recebendo 45% a menos? É isso o que acontece com músicos do Distrito Federal em 2020.
Acredito que essa pressão nas relações de trabalho acontece porque a arte vem antes do trabalho na cabeça da maioria de nós músicos. Assim, muitas vezes aceitamos tocar por um valor abaixo do que merecemos para “fazer um som com os amigos”. Aceitamos tocar por menos para ter a oportunidade de exercer nossa arte e voltarmos mais felizes para casa. Infelizmente, pessoas se aproveitam disso e o resultado é uma considerável queda em nossa renda com o passar dos anos.
Como resolver isso? Cabe a nós pensar no coletivo, da mesma maneira que estamos pensando ao ficarmos em casa para conter o avanço da COVID-19. Com 126 casos confirmados (dados de domingo 22/03/2020) em uma população de mais de 3 milhões de habitantes no Distrito Federal, a probabilidade de contaminação, mesmo contado com a quantidade de casos suspeitos e com a subnotificação de casos, é ainda muito pequena. Mas estamos todos ficando em casa para o bem coletivo.
E se fizéssemos isso com a nossa música? E se, coletivamente, recusássemos trabalhos para que o contratante não mais encontre quem toque pelo valor que está oferecendo? Certamente elevaríamos, ou melhor dizendo, recuperaríamos nossa renda média.
Lembro que na década de 2000 eu toquei várias vezes em um bar para fazer som com os amigos e receber a “gasolina”. O som era muito bom, muito divertido, mas o proprietário ganhava música ao vivo sem gastar nada. Sem saber, na época, eu estava contribuindo para a redução dos cachês em minha cidade. Parei com isso.
Já não toco em vários bares/restaurantes por causa do valor do cachê. Já não toco para vários promotores de eventos por causa do valor do cachê. Já não trabalho para vários músicos porque sempre oferecem um cachê baixo (em vários casos, a pessoa poderia pagar bem mais). Há poucas semanas, recusei um trabalho para que os outros músicos pudessem ganhar melhor (era um trabalho com um valor fixo e quem me chamou queria montar um quarteto. Eu recusei e sugeri fazer de trio para que todos ganhassem mais).
Essas belas palavras acima não adiantam em nada se não houver uma ação coletiva. Precisamos de um trabalho de conscientização. Precisamos conversarmos uns com os outros SEMPRE para:
- Sabermos o valor médio dos cachês e termos informações para negociarmos um cachê, no mínimo, justo;
- Conscientizar cada pessoa que toca por um valor abaixo da média da importância dessas atitudes para o bem coletivo.
O fato de um músico aceitar um trabalho por menos do que seria justo causa três consequências nefastas: 1) essa pessoa receberá menos que o merecido pelo seu trabalho, 2) se o valor é bem abaixo da média, essa pessoa vai ter mais dificuldades para elevar o valor de seu trabalho e 3) o valor médio dos cachês DE TODOS vai cair, porque poucos vão pagar mais caro por um serviço semelhante. Todos perdem com isso.
É arte e é trabalho.
Você que é músico, valorize a sua posição como artista na sociedade. Aprenda a diferenciar o momento de exercer a arte do momento de exercer o trabalho, principalmente na hora da negociação. Você que consome música, valorize a arte produzida pelas pessoas que estão a sua frente. Você que paga para ter música em seu estabelecimento ou sua casa, valorize a arte executada e que deixa seus clientes/convidados mais felizes. Nesses dias em que não temos bares, restaurantes, festas, shows, teatros, exposições,… você entende o quanto a música ao vivo faz falta em sua vida. Lembre-se disso quando a pandemia passar. Lembre-se que existe uma arte sendo executada no palco, naquele bar que você gosta de ir. Valorize. Aplauda.
Lembre-se também que existe uma pessoa trabalhando e que merece respeito pelo seu trabalho. Já imaginou alguém exigindo que você fique mais 30 minutos após seu horário de trabalho terminar só poque “quer”? É isso que fazem quando exigem que o músico não pare de tocar. Não me entenda mal. Todos nós gostamos dos aplausos e dos pedidos de bis. Mas quando percebemos que a intensão dos pedidos é apenas para a “balada” continuar, isso não é prazeroso. Tente ver um equilíbrio entre sua demonstração que está gostando da arte produzida, em ouvir um bis, e o respeito às pessoas que estão trabalhando há algumas horas.
* Cálculo baseado no cachê mais baixo que eu recebia em 2009 e o valor médio dos cachês em 2020, usando a calculadora do cidadão do Banco Central e usando o INPA como índice de correção monetária. O percentual de redução entre março de 2009 e fevereiro de 2020 é de 45,32%.