Falando sobre cantores e instrumentistas

Ser um músico que faz trabalhos vocais e instrumentais, produz CDs e DVDs, produz shows,… me deixa numa posição privilegiada para observar muitas coisas nas relações interpessoais dentro da música. Uma delas é a relação entre instrumentistas e cantores, que sabemos ser bem abaladas e que cada lado tem grandes objeções em relação ao outro. A ideia de escrever sobre isso já estava latente depois de muitas conversas sobre esse assunto com a cantora Lidi Satier no Brasil. Essa semana, pela presença de uma cantora aqui na universidade, vi que as percepções (negativas) sobre os cantores (especialmente “as”) também ocorrem por aqui nos Estados Unidos. Sendo assim, coloco minhas impressões sobre as reclamações de cada lado, com direito a um bom puxão de orelha. Nos dois.

Ouço de cantores e cantoras que os instrumentistas só pensam na complexidade da harmonia da música, nos instrumentos e elementos dos arranjos, mas nunca em como a voz se coloca na música. Que quando os cantores pedem para simplificar o arranjo ou eliminar um solo é quase que uma afronta ao trabalho intelectual deles. Que não se preocupam com a roupa que vai se apresentar ou que os detalhes do show como posicionamento de palco, trocas de luz, trocas de roupas, cenário,… são uma perda de tempo.

Do outro lado, os instrumentistas reclamam dos exaustivos e incontáveis ensaios para um único show. Reclamam que um cantor não pode ser comparado a um instrumentista porque não sabe (ou sabe muito pouco) de música, que não pode complicar o arranjo porque ele ou ela não vai “saber como entrar”, que é muito ruim de afinação…. e por aí vai.

Quem está errado nessa estória? Para mim, os dois. Explico…

Defendendo os cantores

Amigo instrumentista, compreenda que seu trabalho não é mais importante que o do cantor ou da cantora. A música vocal trabalha elementos diferentes da música instrumental. A música instrumental explora quase que exclusivamente os materiais sonoros (notas, acordes e ritmos) e a transmissão de mensagem na música instrumental é puramente subjetiva. Você apenas “sente” o que quer passar para o ouvinte. O deleite do público é quase que exclusivamente a apreciação dos materiais sonoros trabalhados.  Já a música vocal explora uma maior variedade de percepções. A transmissão da mensagem é mais objetiva por existir uma letra, o que dá um nível de compreensão bem maior por parte do ouvinte. O deleite do público, além dos materiais sonoros, inclui a mensagem da letra e seu reforço cênico/visual.

O que quero dizer com isso? Que para a música vocal mais vale o equilíbrio entre as sensações trabalhadas que sua maestria em rearmonizar aquela melodia. Que para o deleite do público ser perfeito às vezes é preciso tocar apenas tríades, com pouca iluminação no palco e o cantor/cantora precisa estar com uma roupa específica e ajoelhado/ajoelhada ao interpretar. Que por existir uma compreensão mais direta por causa da letra, faz muito mais sentido para o público que hajam elementos visuais verdes em um show que fala sobre natureza que tecidos azuis  no palco simbolizando sua inspiração no mar na sua composição instrumental. São coisas diferentes e merecem abordagens diferentes.

A presença da letra na música vocal tem um peso enorme e tráz o centro das atenções para o cantor/cantora. Os materiais sonoros passam a complementar o sentido dessa letra. É claro que tem muuuuuito espaço a ser explorado com os materiais sonoros e que sua aplicação depende muito da criativade e experiência dos músicos, mas as palavras-chave são coerência e equilíbrio. Então, se não quer que a voz sobressaia sobre seu trabalho, simplesmente recuse quando for convidado. Não aceite “por causa da grana” pra depois ficar reclamando. Isso é muito feio! Se aceitar o trabalho, entenda o espetáculo por completo, entenda o sentido de cada seção do show, entenda o sentido de cada música, de cada letra e trabalhe para que o público tenha uma experiência plena. Entenda que, por mais que você domine seu instrumento com maestria, você é uma peça do todo e deve agir em prol desse todo.

Vários cantores já me falaram o quanto é ruim “barganhar” com o/a instrumentista para que ele/ela faça minimamente direito o trabalho para o qual foi contratado. Também me falaram a sensação de desprezo que recebem dos instrumentistas que passam a música mal passada nos ensaios e ficam com aquela cara de “é música vocal… não merece meu esforço para sair bem feita…” Acho que você não iria gostar se eu fizesse isso no seu show instrumental.

Então, amigo instrumentista, quando for fazer um trabalho assim, acerte todos os detalhes, incluindo quantidade de ensaios, arranjos a escrever, possíveis mudanças, horários de montagem e passagem de som, vestimenta,… e faça seu trabalho como um bom profissional. Se as condições ou qualidade do trabalho não lhe agradam, deixe a vaga para outra pessoa que se encaixa melhor.

Defendendo os instrumentistas

Prezados cantores, o nosso tempo de trabalho (o de vocês também) é muito valioso e não estamos disponíveis infinitos ensaios nem para “investimentos”, do mesmo jeito que as pessoas não estão infinitamente disponíveis nem “investem” em nossos trabalhos pessoais (uso a palavra “nosso” porque me incluo nesse lado). O lançamento de seu CD é apenas seu. Para mim, é um trabalho o qual eu dedico toda minha experiência e musicalidade (nesse caso, uso a primeira pessoa do singular porque sei que nem todo instrumentista se dedica nesse nível). Então, para o lançamento de seu CD, faça um planejamento completo do que você precisa para seu show, dimensione tudo, contrate pessoas (competentes) para te ajudar a definir coisas que você não possa saber (diretor musical, por exemplo) e execute exatamente como planejado. O recurso financeiro deve ser compatível com o tamanho de seu planejamento. Se não tem disponível, reduza o tamanho do projeto ou adie. Por experiência posso dizer que uma remuneração compatível com o tamanho do trabalho deixa todos os profissionais envolvidos muito engajados em seu projeto.

Estudem música e técnica vocal. O mesmo talento que vocês têm para a música nós também temos. Porém, só estamos nas suas bandas porque temos as habilidades necessárias (domínio do instrumento, conhecimentos de harmonia, de estilos musicais, de leitura, de improvisação,…) para executar nossas funções com competência (eu sei que muitos de vocês também têm) e velocidade (em muitos casos resolvemos a música mais rápidos que vocês). Entender a parte teórica da música (harmonia, escalas, forma, leitura, arranjo,…) é altamente produtivo para a preparação do seu show e principalmente para o seu posicionamento como artista. Você estará bem mais confiante em tudo, não precisará de “dicas de entrada” e poderá opinar com muita propriedade na função de cada músico como peça componente de seu espetáculo. Além disso, você auxilia muito o trabalho de seu/sua diretor/diretora musical para alcançar os objetivos que vocês planejaram.

Afinação é regra. Para cantores e instrumentistas.

Em meu trabalho como diretor musical de shows, me sinto muito mais confiante num resultado de excelência quando tenho uma equipe de instrumentistas e cantores altamente qualificados. Alguns exemplos… Com os instrumentistas certos, resolvo shows simples e médios com um ou dois ensaios e shows complicados com até três ensaios. Resolver significa chegar no palco com perfeição. Trabalho com cantores que às vezes só mando a partitura de uma melodia para ser executada e e eles chegam no ensaio com ela “embaixo do gogó”. Conheço uma cantora que sabe todas as entradas de todos instrumentos em seu show e que pode cantar todas as melodias de cada um deles. Presenciei uma cantora corrigindo nota errada em uma introdução bem complicada que um guitarrista estava tocando (acho que era numa música do Guinga). Para uma aluna cantora no Brazilian Ensemble aqui nos Estados Unidos, eu entrego a mesma partitura que entrego para o saxofonista executar. Para todos eles (instrumentistas e cantores) basta dizer “o solo de bateria tem 22 compassos” e todos entram no lugar certo.

Nas duas áreas, vocal e instrumental, quanto maior compreensão de todas as facetas da música, melhor será o resultado artístico da obra.

Delimitando a área da discussão

Esse texto se baseia apenas nas reclamações que descrevi no segundo e terceiro parágrafo e, obviamente, o assunto é muito mais complexo e extenso que o descrito aqui. As impressões que coloco são baseadas nas minhas experiências e você tem todo o direito de discordar. O mais importante que eu acho disso tudo é entendermos que temos falhas a consertar, posturas a rever e, principalmente, temos que respeitar as especificidades do trabalho de cada um. Deixo claro também que não discuto nesse texto a questão dos cantores e instrumentistas amadores, pelo simples fato de não ter pensado na posição deles em relação a esse assunto.

Um assunto que preferi deixar de fora é a reclamação de instrumentistas sobre cantores que “esquecem” da banda que “investiu no trabalho” quando alcançam o “sucesso”. Deixei de fora porque, além de existirem muitas variáveis delicadas nas mudanças que o “sucesso” pode razer, o ato deliberado de “esquecer” não é problema somente de cantores. Isso é de falta de caráter da pessoa humana e acontece também com instrumentistas que alcançam o “sucesso”. Só é mais recorrente na música vocal por esta ser mais lucrativa e ter maior apelo de mercado.

Finalizando

Para pensar… O que um lado pode aprender com o outro e incorporar na sua forma de fazer arte? Será que esses lados não podem ser simplesmente o mesmo todo, respeitando suas especificidades? Será que cantores e instrumentistas não podem realizar uma música que não seja instrumental nem vocal, mas que seja apenas música? Isso é tema para um próximo texto…